João Wagner Galuzio
Certa vez, depois de eu descrever
a importância da visão sistêmica como competência diferencial para o exercício
cidadão e profissional, um aluno me trouxe, na aula seguinte, seu currículo onde
já havia adicionado essa virtude entre suas qualificações. Expliquei, por
óbvio, que no currículo devemos apresentar tudo aquilo que podemos demonstrar
suficiência ou experiência. Propus um desafio para que pudesse demonstrar essa
capacidade e lhe pedi que fizesse uma análise da, então recente, crise
financeira internacional decorrente dos eventos relativos aos títulos sub prime
que devastou a economia por todo o planeta no final da primeira década do
século 21. Ligeiro, ele respondeu: “É uma crise, é financeira e é internacional!”
Naturalmente tive oportunidade de
orientar o noviço sobre como parecia singela sua resposta e apresentei alguns
elementos que, no meu também modesto entendimento, pareciam ser ingredientes de
uma visão sistêmica como as habilidades de observar e perceber a dinâmica, a velocidade
e a intensidade ao longo do tempo e, simultaneamente, reconhecer a extensão e a
repercussão no espaço ou ambiente relativo aos eventos intrínsecos a aquela
crise.
Apesar de 10 anos passados, penso
que cada vez mais seja necessário refletir nestes tempos em que redes sociais
se tornaram tribunais, muitos blogs pretendem ser agência de notícias e
indivíduos que, de cidadãos conscientes, se converteram em aglomerados
radicais, cujas opiniões são determinadas por algum tutor ou mecanismo virtual.
Como isso pode acontecer? Eu, cândido e poliano, vou tripudiar uma hipótese,
primária, mas plausível.
Para contextualizar vou buscar
algumas referências ancestrais relativas ao desenvolvimento de nosso jeito homo
sapiens de entender o mundo. O nosso córtex pré-frontal é um dos componentes
mais sofisticados do nosso cérebro e capaz de observar, comparar, associar,
elaborar e processar raciocínios complexos. No entanto, esse processador fenomenal
talvez esteja perdendo protagonismo para os nossos cérebros límbico e reptiliano,
que alternam soluções excludentes entre si: bater ou correr, lutar ou fugir,
enfrentar ou se esconder. Parece que nunca foi tão fácil (e delicioso) criticar
ou, como se convencionou dizer mais recentemente, ‘cancelar’ o outro. Não concordamos
com o que nem entendemos e então criticamos ou, se impotentes para criticar,
tratamos como descartável e desprezível a opinião do outro, simplesmente lhe
atribuindo com sarcasmo qualquer predicado ou adjetivo infeliz.
Otimista compulsivo, eu pensava
que este retrocesso fosse de apenas algumas poucas décadas, mas agora percebo
que o gatilho da polarização nos transporta, na melhor das hipóteses, à idade
média e, na pior das hipóteses, à idade da pedra lascada. A conveniência da
mentalidade medieval nos trazia conforto quando enxergávamos o sol em torno da
terra, dogma que parecia óbvio no tempo das trevas. Antes, como nômades
sapiens, temíamos a luz além das cavernas, valei-me Platão. Esse enxergava
muito! Essa polarização atual patrocina o linchamento dos que se alternam e se
altercam em cavernas vizinhas, mas opostas.
O que é sombra para um é luz para
o outro e vice versa. Ofende a todos os entrevados atrever-se tentar enxergar
além de sombras no cafofo da caverna, zona de conforto de cérebros cujos
neurônios parecem satisfeitos encharcados de dopamina, uma lente química para
recompensar nossas certezas. O método de linchamento varia conforme o buraco em
que se meteram. Para os ermitões à direita, pensamento crítico faz do iluminado
um ‘isentão’ ou omisso, para os que se acham progressistas na caverna à
esquerda, ter comportamento ou consciência diferente, o torna um burguês, classe
média. Para os que estão em cavernas, não interessa a razão, apenas a
desmoralização. Para manterem a ordem unida uns, surdos, berram slogans e
gritos de guerra, enquanto do outro lado, alguns punhados gritam e repetem citações
como se decreto, certeza ou verdade absoluta fossem.
Hoje, para viver e crescer numa
sociedade complexa e dinâmica impõe-se, como elementar, a necessidade de se
perceber, observar e aprender os movimentos mais ou menos velozes e as tensas e
intensas mudanças ao logo do tempo; e, mais ou menos abrangentes e extensas no
espaço. Parâmetros elementares que representam a base da visão sistêmica. Se
não, de outro modo, míopes, vamos perceber e observar quaisquer fenômenos de um
jeito embaçado e, ou, editados e afetados por lentes distorcidas, provocando o
astigmatismo ideológico.
Perceber e observar fotos e
memes, alguns divertidos - é verdade-, outros ‘ingênuos’, para se entender as
engrenagens de como se dá a evolução política de uma sociedade, a relação entre
os poderes, as implicações jurídicas e as sutilezas culturais representa uma
sistemática miopia intelectual. Para ficar na metáfora oftalmológica é como
ignorar um grave escotoma, para enxergarmos apenas o que podemos ou queremos. Um
escotoma pode ser natural, o ponto cego lateral de nossa vista ou, se patológico,
é a perda, menor ou maior, de parte do campo visual resultado de uma lesão na
retina. Por analogia, também se diz escotoma a nossa fixação em um único e
estreito foco na observação ou análise de qualquer evento, versus um universo
de detalhes em perspectiva. Enxergamos apenas o paradigma mais confortável como
arma para lutar ou ferramenta para fugir do que não sabemos.
Negação, distorção e
generalização são algumas das lentes mais fáceis para fazer nossa miopia
parecer ‘supervisão’ sistêmica. Prevalece o domínio do método indutivo para se
entender o todo a partir de algum mínimo substrato do objeto. Esse método de se
compor o contexto não tem nada de errado em si mesmo, a encrenca se dá quando
escolhemos e determinamos apenas uma fração para formar inteiros deformados.
Essa edição, muitas vezes, nos faz chapar todas as sutilezas como intensidade e
extensão, no tempo e no espaço, como se tudo estivesse na mesma proporção.
Um evento, dado ou informação
numa dimensão primitiva, em março de 2020 divulgada no sertão da ciência subordinada
a todo tipo fundamentalismo ideológico é usado para comparar com uma avaliação sofisticada,
complexa e multifacetada produzida em laboratórios teóricos submetidos a todos
rigores metodológicos. Faz-se um recorte, pode ser um post bobo, para ‘julgar’
um relatório ou estudo envolvendo o estado-da-arte em pesquisa científica.
Pior, muitas vezes, aqueles ‘cientistas’ fundamentalistas usam a estrutura de
apresentação de métodos para fazer parecer crível. Assim, basta chamar de
científico um texto medíocre, simulacro de meta-análise, mas apenas colagem
ginasial de ideias desconexas, que é divulgado numa revista desqualificada,
para que ele pareça ganhar status para enfrentar teses elaboradas e amplamente testadas,
corroboradas ou não. As cavernas ululam e apupam a sombra que ilumina sua
miopia sistemática.