segunda-feira, 29 de março de 2021

Visão sistêmica e miopia sistemática - uma questão de ótica!

João Wagner Galuzio

Certa vez, depois de eu descrever a importância da visão sistêmica como competência diferencial para o exercício cidadão e profissional, um aluno me trouxe, na aula seguinte, seu currículo onde já havia adicionado essa virtude entre suas qualificações. Expliquei, por óbvio, que no currículo devemos apresentar tudo aquilo que podemos demonstrar suficiência ou experiência. Propus um desafio para que pudesse demonstrar essa capacidade e lhe pedi que fizesse uma análise da, então recente, crise financeira internacional decorrente dos eventos relativos aos títulos sub prime que devastou a economia por todo o planeta no final da primeira década do século 21. Ligeiro, ele respondeu: “É uma crise, é financeira e é internacional!”

Naturalmente tive oportunidade de orientar o noviço sobre como parecia singela sua resposta e apresentei alguns elementos que, no meu também modesto entendimento, pareciam ser ingredientes de uma visão sistêmica como as habilidades de observar e perceber a dinâmica, a velocidade e a intensidade ao longo do tempo e, simultaneamente, reconhecer a extensão e a repercussão no espaço ou ambiente relativo aos eventos intrínsecos a aquela crise.

Apesar de 10 anos passados, penso que cada vez mais seja necessário refletir nestes tempos em que redes sociais se tornaram tribunais, muitos blogs pretendem ser agência de notícias e indivíduos que, de cidadãos conscientes, se converteram em aglomerados radicais, cujas opiniões são determinadas por algum tutor ou mecanismo virtual. Como isso pode acontecer? Eu, cândido e poliano, vou tripudiar uma hipótese, primária, mas plausível.

Para contextualizar vou buscar algumas referências ancestrais relativas ao desenvolvimento de nosso jeito homo sapiens de entender o mundo. O nosso córtex pré-frontal é um dos componentes mais sofisticados do nosso cérebro e capaz de observar, comparar, associar, elaborar e processar raciocínios complexos. No entanto, esse processador fenomenal talvez esteja perdendo protagonismo para os nossos cérebros límbico e reptiliano, que alternam soluções excludentes entre si: bater ou correr, lutar ou fugir, enfrentar ou se esconder. Parece que nunca foi tão fácil (e delicioso) criticar ou, como se convencionou dizer mais recentemente, ‘cancelar’ o outro. Não concordamos com o que nem entendemos e então criticamos ou, se impotentes para criticar, tratamos como descartável e desprezível a opinião do outro, simplesmente lhe atribuindo com sarcasmo qualquer predicado ou adjetivo infeliz.

Otimista compulsivo, eu pensava que este retrocesso fosse de apenas algumas poucas décadas, mas agora percebo que o gatilho da polarização nos transporta, na melhor das hipóteses, à idade média e, na pior das hipóteses, à idade da pedra lascada. A conveniência da mentalidade medieval nos trazia conforto quando enxergávamos o sol em torno da terra, dogma que parecia óbvio no tempo das trevas. Antes, como nômades sapiens, temíamos a luz além das cavernas, valei-me Platão. Esse enxergava muito! Essa polarização atual patrocina o linchamento dos que se alternam e se altercam em cavernas vizinhas, mas opostas.

O que é sombra para um é luz para o outro e vice versa. Ofende a todos os entrevados atrever-se tentar enxergar além de sombras no cafofo da caverna, zona de conforto de cérebros cujos neurônios parecem satisfeitos encharcados de dopamina, uma lente química para recompensar nossas certezas. O método de linchamento varia conforme o buraco em que se meteram. Para os ermitões à direita, pensamento crítico faz do iluminado um ‘isentão’ ou omisso, para os que se acham progressistas na caverna à esquerda, ter comportamento ou consciência diferente, o torna um burguês, classe média. Para os que estão em cavernas, não interessa a razão, apenas a desmoralização. Para manterem a ordem unida uns, surdos, berram slogans e gritos de guerra, enquanto do outro lado, alguns punhados gritam e repetem citações como se decreto, certeza ou verdade absoluta fossem.

Hoje, para viver e crescer numa sociedade complexa e dinâmica impõe-se, como elementar, a necessidade de se perceber, observar e aprender os movimentos mais ou menos velozes e as tensas e intensas mudanças ao logo do tempo; e, mais ou menos abrangentes e extensas no espaço. Parâmetros elementares que representam a base da visão sistêmica. Se não, de outro modo, míopes, vamos perceber e observar quaisquer fenômenos de um jeito embaçado e, ou, editados e afetados por lentes distorcidas, provocando o astigmatismo ideológico.

Perceber e observar fotos e memes, alguns divertidos - é verdade-, outros ‘ingênuos’, para se entender as engrenagens de como se dá a evolução política de uma sociedade, a relação entre os poderes, as implicações jurídicas e as sutilezas culturais representa uma sistemática miopia intelectual. Para ficar na metáfora oftalmológica é como ignorar um grave escotoma, para enxergarmos apenas o que podemos ou queremos. Um escotoma pode ser natural, o ponto cego lateral de nossa vista ou, se patológico, é a perda, menor ou maior, de parte do campo visual resultado de uma lesão na retina. Por analogia, também se diz escotoma a nossa fixação em um único e estreito foco na observação ou análise de qualquer evento, versus um universo de detalhes em perspectiva. Enxergamos apenas o paradigma mais confortável como arma para lutar ou ferramenta para fugir do que não sabemos.

Negação, distorção e generalização são algumas das lentes mais fáceis para fazer nossa miopia parecer ‘supervisão’ sistêmica. Prevalece o domínio do método indutivo para se entender o todo a partir de algum mínimo substrato do objeto. Esse método de se compor o contexto não tem nada de errado em si mesmo, a encrenca se dá quando escolhemos e determinamos apenas uma fração para formar inteiros deformados. Essa edição, muitas vezes, nos faz chapar todas as sutilezas como intensidade e extensão, no tempo e no espaço, como se tudo estivesse na mesma proporção.

Um evento, dado ou informação numa dimensão primitiva, em março de 2020 divulgada no sertão da ciência subordinada a todo tipo fundamentalismo ideológico é usado para comparar com uma avaliação sofisticada, complexa e multifacetada produzida em laboratórios teóricos submetidos a todos rigores metodológicos. Faz-se um recorte, pode ser um post bobo, para ‘julgar’ um relatório ou estudo envolvendo o estado-da-arte em pesquisa científica. Pior, muitas vezes, aqueles ‘cientistas’ fundamentalistas usam a estrutura de apresentação de métodos para fazer parecer crível. Assim, basta chamar de científico um texto medíocre, simulacro de meta-análise, mas apenas colagem ginasial de ideias desconexas, que é divulgado numa revista desqualificada, para que ele pareça ganhar status para enfrentar teses elaboradas e amplamente testadas, corroboradas ou não. As cavernas ululam e apupam a sombra que ilumina sua miopia sistemática.