sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Gennaro não morreu.

João Wagner Galuzio
Escrevedor e Cantador

Gennaro era italiano e, como tal, eu o tratava por “Paesano” ao que ele devolvia com o seu habitual bom humor tonitruante. – “Fala professor, cadê a ‘Juliana?’”,  como a procurar pela minha Mariana. Não que ele não soubesse o seu nome, a confusão o fazia de modo deliberado, do seu jeito peralta e faceiro. Sempre jocoso, esse velho amigo baixinho mancava. Os ossos o massacravam e ia para todo lado com seu entusiasmo e a voz rouca, como se fora um personagem de Adoniran esbanjando energia. Do alto de sua pouca estatura brindava-nos com seus comentários entre divertidos e curiosos. Mancava, mas não claudicava.

Solícito lhe caberia bem por sobrenome. Gennaro, o Solícito! Incapaz de ser indiferente. Atento a tudo, não perdia o contato com quem ele estivesse atendendo. Contagiava a todos com sua amizade. Por diversas vezes me apresentou a outros clientes com a intimidade que apresentamos nossas famílias. Penso que outros como eu assim se sentiam, um pouco sua família. Para uns poderia ser o tio bonachão, outros talvez pudessem encontrar em suas palavras e na sua atenção, os conselhos de um pai.

Para minha filhinha, que não conheceu seus vovôs senão apenas em filmes e fotos, ele era querido como um vovô muito bonzinho. A Mariana havia a pouco completado dois anos quando, a pé, voltava da escola de mãos dadas com a Neide (naquele tempo nossa funcionária do lar, hoje nossa amiga querida) e, todos os dias, divertia-se a gargalhar dos berros gentis e incandescentes do Gennaro, acenando sua mão do jeito malemolente como só o italiano sabe fazer. Não encontrá-lo a deixava um pouco frustrada.

Agora às vésperas de completar doze anos, Mariana não conhece outra realidade sem o Gennaro. A notícia de sua morte foi tão acachapante para mim, como uma passagem do filme Cinema Paradiso quando, logo no começo, o protagonista recebe de modo implacável, por telefone, a notícia: – “Alfredo morreu”.

Desde que vi este filme, essa frase impregnou-se em minha alma e em minha mente de modo indelével. Jamais outra vez soube de um falecimento, sem que essa frase gritasse em minha consciência. Dita de modo pragmático e objetivo é a pura e dura expressão do irremediável, do irreversível.

Muitas vezes passava pelo posto de gasolina, onde ele atendia, apenas para roubar-lhe um pouco da sua graça e alegria. Poucos dias antes de sua despedida estive lá e juntos nos divertíamos com amenidades. Estava radiante como sempre e, como soube da cirurgia e de suas consequências vários dias depois de seu trânsito, restou-me ainda uma última referência de Adoniran.

O meu arrependimento pessoal de nunca haver registrado, com ele, uma foto sequer. “Iracema tenho suas meias e seu sapato, [Iracema] eu perdi o seu retrato”, cantava o célebre compositor e proseador paulista, enquanto eu terei de levar na lembrança apenas sua veia sincera e seu recato generoso Gennaro.


Passar em frente ao posto de serviços, onde trabalhava e saber que não o ouviremos mais, deixa um enorme vazio no peito, mas sei e espero que minh‘alma saberá encontrar na sua memória o conforto para aplacar a dor do seu passamento. Fica uma certeza. O céu é, desde o Gennaro, um lugar muito mais interessante, divertido e caloroso. Alfredo morreu, o Gennaro não. Ele sempre viverá em mentes e corações.

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